Já se vão mais de 20 anos desde meu começo no
RPG, mas mesmo com todo esse tempo de jogatina, poucas foram as oportunidades
que tive de usar (ou ver ser usado) o território e o folclore brasileiros como
foco ou contexto de partidas. Não falo apenas de ter personagens brasileiros ou
cenas no Brasil, que isso é fácil e comum. Falo de fazer algo com "cara de
Brasil", na origem e no "colorido". De fato, posso recordar de
ter narrado apenas duas sessões, sendo a primeira a mais significativa delas.
A façanha ocorreu na única vez em que fui a um
evento de RPG, em Porto Alegre, o Tchê RPG, acho que em 2000. Na ocasião, tinha
acabado de adquirir aquele pequeno livreto que seria meu contato inicial com o
sistema GURPS - Mini-GURPS Entradas e Bandeiras -, e quis logo pô-lo em
mesa. Por coincidência, o mestre da mesa em que eu estava inscrito como jogador
não apareceu e os caras que estavam por ali aceitaram que eu mestrasse no
lugar, mesmo que o jogo em questão fosse algo que ninguém havia experimentado. Resultado?
Além de termos uma partida incrível com a aventura introdutória do livreto,
ainda voltei pra casa com o entendimento de que aventuras usando a história do
Brasil podem fazer tanto sentido quanto cenários históricos de outros pontos do
mundo. De quebra, por ter sido o mestre da mesa, ganhei de brinde uma
camisa do evento, com a ilustração de um dragão tomando chimarrão!
Mas aquela experiência nostálgica nunca me
pareceu completa, por um único fator: eu adoro fantasia e não houve elemento
algum de fantástico na aventura. Nada de criaturas míticas, efeitos
sobrenaturais ou feitiços. Pode parecer uma frustração boba pra quem acha que
jogar "realismo" também tenha seu valor, mas eu já vivo realismo na
realidade, ora bolas! Quero narrar histórias dignas de lendas e quero magia
nisso! Contudo, eu não achava que o sistema GURPS seria o ideal pra lidar com
magia e misticismo no contexto em questão, então acabei abandonando o livreto
das Entradas e Bandeiras na prateleira...
Vim a saber, anos mais tarde, que um RPG chamado Desafio
dos Bandeirantes fora o primeiro a lidar com cultura, história e mitos do
Brasil. Infelizmente, era um jogo já sem continuidade no mercado, o que tornou
muito difícil encontrá-lo. Mas eu consegui. E afirmo que, apesar de ter encontrado
jogadores preconceituosos em meu caminho (com relação ao folclore brasileiro e
ao seu uso em aventuras), e de nunca ter conseguido mestrá-lo, é um jogo
merecedor de muitos aplausos.
O tempo passou, e mais recentemente, acompanhei
pela internet algumas resenhas e muitos elogios a um RPG muito semelhante ao
Desafio, o qual foi inspirado num romance de mesmo título (e do mesmo autor): A
Bandeira do Elefante e da Arara (doravante, ABEA). E posso afirmar: que
livro incrível, senhoras e senhores!!! Desde o primeiro momento em que o pus em
minhas mãos, eu sabia que teria que acrescentá-lo à minha coleção.
Foi inevitável, porém que, desde o início de
minha leitura, eu fizesse algo praticamente compulsório a respeito do ABEA: eu
o li como algo novo, original, independente, tal como é, de fato, mas também
comparava constantemente com o Desafio. E foi por isso que resolvi escrever
esta matéria, cuja proposta é apontar os pontos positivos e negativos de ambos
os jogos, comparando seus livros básicos em todos os quesitos que pude pensar:
arte & diagramação, texto (analisando qualidade para leitura, conteúdo
útil e diferencial de abordagem) e sistema de jogo.
Claro que eu não sou nenhum analista de jogos
formado e, por isso, vale lembrar que essas foram as minhas impressões, como
mestre, leitor e fã. Mesmo que pareça que eu esteja incentivando uma espécie de
concorrência ou competição entre os jogos, no fundo, eu gosto muito dos dois e acredito que
os dois funcionam muito bem como complementos um do outro, por motivos que você
vai ler a seguir...
Arte & Diagramação
Aspectos como arte e diagramação são as primeiras
coisas que se nota ao tomar um livro novo em mãos, por isso sua importância. A
arte incentiva a imaginação, ilustra o clima do jogo, serve de exemplo do que
se encontra na ambientação. A diagramação, que é basicamente o modo como o
texto, as ilustrações e os espaços em branco se distribuem pelas páginas,
aprimora a experiência de leitura, quando bem feita, e facilita a assimilação
do conteúdo.
Quando penso nesse quesito, não posso deixar de
lembrar que Desafio dos Bandeirantes foi lançado numa época editorial muito
diferente, onde os parâmetros eram possivelmente mais simples (quando
comparados aos atuais), os recursos eram menores e a tecnologia inferior. Logo,
não é à toa que o livro não parece um "padrão ouro". Particularmente,
eu curto o estilo de arte que foi adotado, porque ele dita um clima rústico,
agressivo, misterioso, mas não é uma arte encantadora, capaz de causar
maravilhamento e ferver a imaginação, como a que está no ABEA. Coisa de
primeiro mundo, sem perder a brasilidade. Nesse quesito, portanto, Desafio fica
com nota 7, ABEA leva 10!!
Texto
Desafio e ABEA compartilham do mesmo sub-gênero
de aventura e fantasia, tendo suas ambientações em versões fantásticas do
Brasil, entre os séculos XVI e XVII, o que já se convencionou chamar
"Fantasia Colonial". Cada um tem sua abordagem do tema, sem haver
melhor ou pior nisso; contudo, o recurso que você usa pra perceber essas
abordagens é o texto e aqui temos diferenças importantes.
De certa forma, muito sutilmente, Desafio tem um
texto mais descontraído, menos formal, quando explica seu cenário e suas
regras, enquanto ABEA parece um livro de história do ensino médio, com um texto
mais didático. De todo modo, ambos são agradáveis de ler e os contos que
exemplificam personagens e o cenário fazem bem seu papel de inspirar.
O enfoque ao descrever a ambientação é algo muito
distinto. Desafio oferece bastante detalhamento na geografia da Terra de Santa
Cruz (sua versão do Brasil) e descreve sem pudor as relações entre as raças
habitantes do país, bem como os papéis que ocupavam numa sociedade marcada pela
opressão do colonizador europeu, escravagista e dominador. ABEA foi mais
"suave" nesse sentido, no meu entendimento. Em contrapartida, ensina
de forma muito intensa sobre as diferentes etnias indígenas e as origens dos
povos africanos escravizados, algo que eu jamais havia encontrado, mesmo em
outras mídias. Ainda, ABEA fez uma abordagem muito bacana da economia da época
e tem uma linha de tempo um pouquinho mais clara.
Essas diferenças de conteúdo foram exatamente o
que gerou em mim a compulsão de comparar e, no fim das contas, percebi que não
consiguia ver os conteúdos desses livros como alternativas de jogo, mas como
complementos entre si (e, nisso, incluí também o Entradas e Bandeiras, com algumas informações que os outros dois
não traziam).
Sistema de Jogo
Desafio tem um sistema bem rígido e completo, que
eu curto bastante, mas com algumas "escolhas de design" que eu acho
particularmente confusas e desnecessárias, como: ter um Atributo Sorte e usar d% para testes de Habilidades,
mas trocar pelo d20 na hora docombate. Aliás, no que diz respeito ao combate, Desafio,
infelizmente, é muito travado, por obrigar o jogador a levar em consideração
fatores demais em cada golpe e por ter
maneiras diferentes de resolver ataques corpo a corpo e com armas de
disparo/arremesso. É claro que eu conheço e até aprecio jogos mais complexos
que o Desafio, mas o diferencial está na padronização e harmonia das regras, que
poderia tornar os combates mais intuitivos.
Pra deixar claro que não vejo só defeitos, vale
apresentar o sistema de construção de personagens: você tem de escolher uma
Raça e uma Profissão (que faz o papel das "classes" de D&D e
similares); depois, escolhe suas Habilidades e distribui pontos, além de
determinar Atributos e Classe Social de modo aleatório. Ao meu ver, é bem objetivo
e permite uma personalização legal, pois mesmo sua Profissão não restringe as
Habilidades que pode vir a dominar (excetuando magias e milagres). Além disso,
um sistema com "tipos de personagem" favorece o jogador iniciante,
que precisa de um direcionamento maior sobre o que fazer, em relação ao cenário
e os tipos de aventuras que virão. Por fim, a escolha dos equipamentos oferece
bastante detalhamento.
ABEA optou por um sistema mais simples e fácil de
aprender e usar, que funciona seguindo um padrão mais previsível e fluido. Os
personagens não possuem atributos inatos, apenas Habilidades adquiridas com
aprendizado e prática (e mesmo a Força Física é incluída aqui). Também não
temos tipos de personagem: você pode ter criatividade total, dentro do contexto
de jogo e, logicamente, com algum bom senso. Seguindo essas premissas, apresenta
um dos sistemas com construção de personagem mais rápida que eu já vi, mas, no
quesito equipamento, você terá pouca coisa a fazer, pois o dinheiro é pouco e
algumas escolhas já foram tomadas por você.
Surpreendentemente, parece que o autor estava
muito empolgado ao escrever e acabou deixando algumas coisas de lado - você
sente, com um pouquinho mais de critério na avaliação, que o sistema não está
completo. É óbvio que um mestre experiente (aqui chamado "mediador")
pode preencher as lacunas sem enfrentar problemas, mas o livro foi feito para
iniciantes, e até para ser usado em salas de aula, então deixar tantas pontas
soltas (como não haver uma Habilidade "Furtividade" e regras
relacionadas à percepção de coisas como objetos escondidos ou emboscadas) é
inconveniente. Por sorte, o autor é bastante ativo nas redes sociais e tem se
empenhado em solucionar tais problemas, divulgando suas ideias, permitindo
debates e aceitando sugestões. Logo mais, ao que parece, uma versão revisada e
ampliada do módulo básico de regras será lançada, assim como suplementos
diversos.
Considerando tudo, nesse quesito, acho que ocorre
mais um empate, com outra nota 9,0 para cada um!
Conclusão
Aí está: os dois maiores RPGs de Fantasia
Colonial analisados. Recomendo fortemente ambas as opções, cada qual por seus
méritos. De minha parte, eu vou sempre usar os dois em conjunto (ou melhor, os
três, pois o Entradas e Bandeiras também me ajuda com um bocado de informação).
P.S.: eu sei que existe um outro RPG de Fantasia
Colonial, mas ainda não tive a oportunidade de conhecê-lo, e só por isso ele
foi deixado pra uma outra conversa, quem sabe um dia...Santa Cruz é seu nome e Daemon é o sistema de regras, caso queiram pesquisar! ;)
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