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quarta-feira, 4 de julho de 2018

Colônia Fantástica! - Aventuras no Brasil

Já se vão mais de 20 anos desde meu começo no RPG, mas mesmo com todo esse tempo de jogatina, poucas foram as oportunidades que tive de usar (ou ver ser usado) o território e o folclore brasileiros como foco ou contexto de partidas. Não falo apenas de ter personagens brasileiros ou cenas no Brasil, que isso é fácil e comum. Falo de fazer algo com "cara de Brasil", na origem e no "colorido". De fato, posso recordar de ter narrado apenas duas sessões, sendo a primeira a mais significativa delas.

A façanha ocorreu na única vez em que fui a um evento de RPG, em Porto Alegre, o Tchê RPG, acho que em 2000. Na ocasião, tinha acabado de adquirir aquele pequeno livreto que seria meu contato inicial com o sistema GURPS - Mini-GURPS Entradas e Bandeiras -, e quis logo pô-lo em mesa. Por coincidência, o mestre da mesa em que eu estava inscrito como jogador não apareceu e os caras que estavam por ali aceitaram que eu mestrasse no lugar, mesmo que o jogo em questão fosse algo que ninguém havia experimentado. Resultado? Além de termos uma partida incrível com a aventura introdutória do livreto, ainda voltei pra casa com o entendimento de que aventuras usando a história do Brasil podem fazer tanto sentido quanto cenários históricos de outros pontos do mundo. De quebra, por ter sido o mestre da mesa, ganhei de brinde uma camisa  do evento, com a ilustração de um dragão tomando chimarrão!




Mas aquela experiência nostálgica nunca me pareceu completa, por um único fator: eu adoro fantasia e não houve elemento algum de fantástico na aventura. Nada de criaturas míticas, efeitos sobrenaturais ou feitiços. Pode parecer uma frustração boba pra quem acha que jogar "realismo" também tenha seu valor, mas eu já vivo realismo na realidade, ora bolas! Quero narrar histórias dignas de lendas e quero magia nisso! Contudo, eu não achava que o sistema GURPS seria o ideal pra lidar com magia e misticismo no contexto em questão, então acabei abandonando o livreto das Entradas e Bandeiras na prateleira...

Vim a saber, anos mais tarde, que um RPG chamado Desafio dos Bandeirantes fora o primeiro a lidar com cultura, história e mitos do Brasil. Infelizmente, era um jogo já sem continuidade no mercado, o que tornou muito difícil encontrá-lo. Mas eu consegui. E afirmo que, apesar de ter encontrado jogadores preconceituosos em meu caminho (com relação ao folclore brasileiro e ao seu uso em aventuras), e de nunca ter conseguido mestrá-lo, é um jogo merecedor de muitos aplausos.
O tempo passou, e mais recentemente, acompanhei pela internet algumas resenhas e muitos elogios a um RPG muito semelhante ao Desafio, o qual foi inspirado num romance de mesmo título (e do mesmo autor): A Bandeira do Elefante e da Arara (doravante, ABEA). E posso afirmar: que livro incrível, senhoras e senhores!!! Desde o primeiro momento em que o pus em minhas mãos, eu sabia que teria que acrescentá-lo à minha coleção.

Foi inevitável, porém que, desde o início de minha leitura, eu fizesse algo praticamente compulsório a respeito do ABEA: eu o li como algo novo, original, independente, tal como é, de fato, mas também comparava constantemente com o Desafio. E foi por isso que resolvi escrever esta matéria, cuja proposta é apontar os pontos positivos e negativos de ambos os jogos, comparando seus livros básicos em todos os quesitos que pude pensar: arte & diagramação, texto (analisando qualidade para leitura, conteúdo útil  e diferencial de abordagem) e sistema de jogo.

Claro que eu não sou nenhum analista de jogos formado e, por isso, vale lembrar que essas foram as minhas impressões, como mestre, leitor e fã. Mesmo que pareça que eu esteja incentivando uma espécie de concorrência ou competição entre os jogos, no fundo, eu gosto muito dos dois e acredito que os dois funcionam muito bem como complementos um do outro, por motivos que você vai ler a seguir...



Arte & Diagramação

Aspectos como arte e diagramação são as primeiras coisas que se nota ao tomar um livro novo em mãos, por isso sua importância. A arte incentiva a imaginação, ilustra o clima do jogo, serve de exemplo do que se encontra na ambientação. A diagramação, que é basicamente o modo como o texto, as ilustrações e os espaços em branco se distribuem pelas páginas, aprimora a experiência de leitura, quando bem feita, e facilita a assimilação do conteúdo.

Quando penso nesse quesito, não posso deixar de lembrar que Desafio dos Bandeirantes foi lançado numa época editorial muito diferente, onde os parâmetros eram possivelmente mais simples (quando comparados aos atuais), os recursos eram menores e a tecnologia inferior. Logo, não é à toa que o livro não parece um "padrão ouro". Particularmente, eu curto o estilo de arte que foi adotado, porque ele dita um clima rústico, agressivo, misterioso, mas não é uma arte encantadora, capaz de causar maravilhamento e ferver a imaginação, como a que está no ABEA. Coisa de primeiro mundo, sem perder a brasilidade. Nesse quesito, portanto, Desafio fica com nota 7, ABEA leva 10!!




Texto

Desafio e ABEA compartilham do mesmo sub-gênero de aventura e fantasia, tendo suas ambientações em versões fantásticas do Brasil, entre os séculos XVI e XVII, o que já se convencionou chamar "Fantasia Colonial". Cada um tem sua abordagem do tema, sem haver melhor ou pior nisso; contudo, o recurso que você usa pra perceber essas abordagens é o texto e aqui temos diferenças importantes.

De certa forma, muito sutilmente, Desafio tem um texto mais descontraído, menos formal, quando explica seu cenário e suas regras, enquanto ABEA parece um livro de história do ensino médio, com um texto mais didático. De todo modo, ambos são agradáveis de ler e os contos que exemplificam personagens e o cenário fazem bem seu papel de inspirar.

O enfoque ao descrever a ambientação é algo muito distinto. Desafio oferece bastante detalhamento na geografia da Terra de Santa Cruz (sua versão do Brasil) e descreve sem pudor as relações entre as raças habitantes do país, bem como os papéis que ocupavam numa sociedade marcada pela opressão do colonizador europeu, escravagista e dominador. ABEA foi mais "suave" nesse sentido, no meu entendimento. Em contrapartida, ensina de forma muito intensa sobre as diferentes etnias indígenas e as origens dos povos africanos escravizados, algo que eu jamais havia encontrado, mesmo em outras mídias. Ainda, ABEA fez uma abordagem muito bacana da economia da época e tem uma linha de tempo um pouquinho mais clara.

Essas diferenças de conteúdo foram exatamente o que gerou em mim a compulsão de comparar e, no fim das contas, percebi que não consiguia ver os conteúdos desses livros como alternativas de jogo, mas como complementos entre si (e, nisso, incluí também o Entradas e Bandeiras, com algumas informações que os outros dois não traziam).
Nota 9,0 pra cada um, e esse ponto que falta é por conta do que um jogo tem que o outro não tem!




Sistema de Jogo

Desafio tem um sistema bem rígido e completo, que eu curto bastante, mas com algumas "escolhas de design" que eu acho particularmente confusas e desnecessárias, como: ter um Atributo Sorte e  usar d% para testes de Habilidades, mas trocar pelo d20 na hora docombate. Aliás, no que diz respeito ao combate, Desafio, infelizmente, é muito travado, por obrigar o jogador a levar em consideração fatores demais em cada golpe e  por ter maneiras diferentes de resolver ataques corpo a corpo e com armas de disparo/arremesso. É claro que eu conheço e até aprecio jogos mais complexos que o Desafio, mas o diferencial está na padronização e harmonia das regras, que poderia tornar os combates mais intuitivos.

Pra deixar claro que não vejo só defeitos, vale apresentar o sistema de construção de personagens: você tem de escolher uma Raça e uma Profissão (que faz o papel das "classes" de D&D e similares); depois, escolhe suas Habilidades e distribui pontos, além de determinar Atributos e Classe Social de modo aleatório. Ao meu ver, é bem objetivo e permite uma personalização legal, pois mesmo sua Profissão não restringe as Habilidades que pode vir a dominar (excetuando magias e milagres). Além disso, um sistema com "tipos de personagem" favorece o jogador iniciante, que precisa de um direcionamento maior sobre o que fazer, em relação ao cenário e os tipos de aventuras que virão. Por fim, a escolha dos equipamentos oferece bastante detalhamento.

ABEA optou por um sistema mais simples e fácil de aprender e usar, que funciona seguindo um padrão mais previsível e fluido. Os personagens não possuem atributos inatos, apenas Habilidades adquiridas com aprendizado e prática (e mesmo a Força Física é incluída aqui). Também não temos tipos de personagem: você pode ter criatividade total, dentro do contexto de jogo e, logicamente, com algum bom senso. Seguindo essas premissas, apresenta um dos sistemas com construção de personagem mais rápida que eu já vi, mas, no quesito equipamento, você terá pouca coisa a fazer, pois o dinheiro é pouco e algumas escolhas já foram tomadas por você.

Surpreendentemente, parece que o autor estava muito empolgado ao escrever e acabou deixando algumas coisas de lado - você sente, com um pouquinho mais de critério na avaliação, que o sistema não está completo. É óbvio que um mestre experiente (aqui chamado "mediador") pode preencher as lacunas sem enfrentar problemas, mas o livro foi feito para iniciantes, e até para ser usado em salas de aula, então deixar tantas pontas soltas (como não haver uma Habilidade "Furtividade" e regras relacionadas à percepção de coisas como objetos escondidos ou emboscadas) é inconveniente. Por sorte, o autor é bastante ativo nas redes sociais e tem se empenhado em solucionar tais problemas, divulgando suas ideias, permitindo debates e aceitando sugestões. Logo mais, ao que parece, uma versão revisada e ampliada do módulo básico de regras será lançada, assim como suplementos diversos.

Considerando tudo, nesse quesito, acho que ocorre mais um empate, com outra nota 9,0 para cada um!


Conclusão

Aí está: os dois maiores RPGs de Fantasia Colonial analisados. Recomendo fortemente ambas as opções, cada qual por seus méritos. De minha parte, eu vou sempre usar os dois em conjunto (ou melhor, os três, pois o Entradas e Bandeiras também me ajuda com um bocado de informação).
P.S.: eu sei que existe um outro RPG de Fantasia Colonial, mas ainda não tive a oportunidade de conhecê-lo, e só por isso ele foi deixado pra uma outra conversa, quem sabe um dia...Santa Cruz é seu nome e Daemon é o sistema de regras, caso queiram pesquisar! ;)